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Crônica

Seja Livre

Traços da minha infância e adolescência marcadas pela ditadura da beleza

por Lucimara Silva

Foto: Ariel Ilha

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No dia 16 de abril de 2018 fez exatamente cinco anos que decidi assumir minha identidade. Sou de uma geração que passou boa parte da infância e adolescência tentando domar a natureza dos cabelos com produtos tão fortes que geralmente causavam corte químico e até queimaduras no couro cabeludo. Fui prisioneira da química desde os 12 anos, se não antes. Valia de tudo para ter um cabelo mais aceitável. Aprendi nas revistas e comerciais de televisão, que o cabelo crespo não era profissional e que com ele, eu não seria aceita no mercado de trabalho.

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Não tínhamos acesso à informação de como cuidar do nosso cabelo. Tudo o que nos ensinavam era que ele não era bom o suficiente e algo teria que ser feito para deixá-lo parecido com o das modelos de revistas e, quem sabe, semelhante aos daquelas que estampavam as embalagens dos alisantes. Aquele cabelo impecável e brilhante, totalmente reto, era o único alvo a ser perseguido, ainda que isso fosse totalmente impossível.

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Passei por várias fases: cabelo grudado na cabeça pingando creme, com as costas molhadas, sem poder abraçar as pessoas – e, se secasse, procurava um banheiro mais próximo e encharcava; repartido ao meio, preso na nuca estilo rabo de cavalo; molhado atrás e chapinha na franja; até que alisei totalmente e aos poucos o cabelo foi destruído pela chapinha. Tive problemas sérios de complexo de inferioridade e carrego traumas até hoje. Algumas chacotas da infância sobre minha aparência soam como se recém tivessem sido ditas.

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Desde que assumi meus cachos precisei passar por um processo chamado transição capilar. Não tive coragem de cortar toda a química, então passei dias terríveis com a raiz do cabelo enorme e volumosa e as pontas esticadas. Ia cortando aos poucos e muitas vezes pensei em desistir. Mas minha decisão estava mais que concretizada, embora muitas pessoas olhassem para mim com olhar de desprezo. Eu sequer lembrava de como era a forma verdadeira do meu cabelo.

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Não sou contra a alisamentos ou processos químicos. Sou contra as mulheres viverem aprisionadas por um estereótipo de beleza estipulado pela sociedade. Se você quer continuar alisando o seu cabelo, por favor, continue. Mas faça isso porque você se ama assim e não porque o mundo diz que bonito é só um cabelo liso, brilhoso e sem frizz. Entende?

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Felizmente o cenário hoje é outro! Confesso que isso me dá um grande alívio porque as próximas gerações poderão fazer escolhas baseadas em informação e não mais na ditadura da beleza. Agora é tão mais comum encontrar pessoas cacheadas/crespas pelas ruas, independentemente de cargo ou posição social. E esse número é cada vez mais crescente. Que bom! Porém, o cabelo crespo começou a ocupar as revistas, outdoors, anúncios, propagandas e como justificativa ouço frequentemente: “Cabelo cacheado/crespo está em alta. Está na moda”. Eu discordo. Não é uma tendência.

 

É importante que se faça uma reflexão sobre o verdadeiro agente motivador dessa revolução, que não é modismo. Refere-se simplesmente ao fato de dizer NÃO aos paradigmas que nos foram impostos durante a vida inteira. Sinto-me orgulhosa em fazer parte de uma geração que está revolucionado a cabeça das mulheres brasileiras que outrora tiveram suas gerações marcadas por feridas, baixo estima, desprezo e preconceito. Mulheres cheias de traumas, por se sentirem inferiores.

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Não seja mais uma prisioneira da ditadura da beleza. Ninguém tem direito de definir o que é feio ou bonito. Seja livre. Seja feliz. Seja o que quiser ser. Quero espalhar essa mensagem a quantas mulheres negras eu puder. Lutar pelos direitos das mulheres afrodescendentes é também desconstruir estereótipos como esses. Não falar ou lutar pelos direitos das mulheres negras é tapar os olhos para a luta das minhas antepassadas e de tantas que lutam diariamente por espaço, igualdade e justiça.

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