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Visibilidade

As lésbicas e

o feminismo

Na busca por representatividade, mulheres homossexuais formam uma rede do movimento social

por Giovana Brasil e Naiara Silveira

Sapatão, machorra, sapatilha, caminhoneira, fancha, entendida. Você já deve ter ouvido falar em alguma dessas expressões quando o assunto é mulher lésbica. Mas o que talvez você não saiba é que essas mulheres lutam muito para serem reconhecidas e terem os mesmo direitos de toda a população. E um dos espaços para essa luta é justamente o feminismo lésbico.

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O movimento surgiu entre as décadas de 70 e 80, ainda nos Estados Unidos, a partir do momento em que as mulheres lésbicas, que eram militantes feministas, passaram a não se sentir representadas pelo movimento feminista como um todo. “O feminismo foi criado por mulheres heterossexuais, brancas e de classe média alta. Então é óbvio que quando outras mulheres, de diferentes costumes, ideologias e sexualidades vão se unindo ao movimento, elas acabam percebendo que aquele movimento não as representa tanto assim. Criam-se vertentes diferentes, porque cada mulher tem uma necessidade diferente”, comenta a professora de História e militante lésbica, Marília Daniel. E esta perspectiva não é atual.

 

Com a mesma premissa, o grupo Somos - um coletivo de pessoas pertencentes à comunidade LGBT+ -, em 1979, no Estado de São Paulo, incorporou a teoria lésbica do feminismo no Brasil. A comunidade feminina percebeu que suas especificidades eram bem direcionadas e a partir disso, criaram um subgrupo dentro do Somos: o Grupo Lésbico-Feminista ou apenas LF. Posteriormente, o coletivo se transformou em Grupo de Ação Lésbica-Feminista (GALF), ao se separar do Somos.

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"Queremos a mesma coisa, mas para isso precisamos respeitar que somos diferentes" - Marília Daniel

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As reivindicações eram claras. Elas defendiam o direito da mulher poder escolher com quem se relacionar e também ter a liberdade de sentir prazer, além de tratar de temas específicos das lésbicas, como sexo seguro e estereótipos. O grupo buscava debater a lesbianidade não só como assunto privado, entre quatro paredes, mas como uma questão política e aberta. As mesmas lutas do grupo eram também travadas por muitas outras mulheres lésbicas mundo afora, que só gostariam de se sentir representadas dentro do movimento feminista.


“As pessoas têm muito medo da divisão das vertentes, mas estamos todas unidas no mesmo movimento, o feminista. A gente quer que as mulheres tenham direitos iguais e consigam a equidade de verdade, mas não podemos querer unir todas as vertentes, porque assim são apagadas as diferenças que a gente tem. Não somos todas iguais. Queremos a mesma coisa, mas para isso precisamos respeitar que somos diferentes”, diz Marília.

Foto: Reprodução/Facebook

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Marília é professora de História e militante feminista

Conforme a mestra em Ciências Sociais Daniela Romcy, o movimento feminista precisa ser entendido por estas ondas de análise - do contrário, não irá abranger as diversas multiplicidades de mulheres. “Todos os feminismos que vêm pra construir novos olhares sobre o movimento são de uma profunda importância. Tensionamentos provocados pelos feminismos negros, lésbicos, de mulheres com deficiência, de mulheres trans, são importantes pois tencionam o status quo do feminismo”, pontua.

 

Além disto, o prazer lésbico não era nem discutido quando a homossexualidade passou a ser reconhecida - mesmo que ainda fosse tratada como um desvio de sexualidade padrão. “Não se falava sobre lesbianidade, sequer pensava-se que mulheres fariam sexo entre si. Nesse momento o sexo das mulheres não era nem pensado como uma problemática passível, nem sobre o viés do prazer ou desvio. Então a sexualidade das mulheres está presa ao modelo monogâmico heterossexual e as experiências lésbicas de prazer não ficam claras”, explica a antropóloga Gabriela Maia, sob o aspecto histórico do século 19.

 

Apesar dos estudos sobre o tema terem avançado, muito ainda tem-se a conquistar - principalmente no que se refere à ser representada. “A gente ainda precisa batalhar por representatividade. Não sei se ela existe, porque enquanto a gente precisa exigir estar em um espaço, a gente não está incluída ali de verdade. A gente tem que empoderar as mulheres lésbicas e todas as pessoas LGBT para que a gente apareça nesses lugares automaticamente”, pondera Marília.

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Na mídia

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Classicamente, a homossexualidade só é representada no entretenimento de forma estereotipada - tanto no caso das mulheres lésbicas quanto dos homens gays. O imaginário social que se criou sobre a lesbianidade tem fortes raízes justamente nas representações da comunidade LGBT+ na mídia, perpetuando ainda mais os estereótipos e confirmando aquelas palavras que você certamente ouviu ou disse ao se referir a uma mulher lésbica.

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O mesmo acontece com o feminismo, que tem representações deturpadas na mídia, como explica a antropóloga Gabriela: “Homens e mulheres têm uma resistência ao feminismo tanto por desconhecimento da história do movimento quanto por uma leitura que é passada a partir do foco que a mídia faz na cobertura de manifestações, como a marcha das vadias. Por causa dessas formas de ver o feminismo, que geram desconforto, homens e mulheres não se sentem representados nessas imagens públicas e visíveis do movimento. Não percebem que as formas de combates são múltiplas.”

 

Como a representatividade não vem exclusivamente da mídia - e ainda é pouco abordada neste âmbito - é importante que se discuta o feminismo lésbico a partir de outras possibilidades. “Eu acho extremamente importante que esse tema entre na pauta de discussão nos espaços institucionais possíveis e cabíveis, bem como nas rodas de conversa entre amigos, na família. Essas discussões não são da intimidade dos sujeitos, mas formam as suas subjetividades e lugares no mundo. É pra qualquer feminista: o pessoal é sempre político”, afirma Daniela.

 

É relevante, ainda, perceber a presença das mulheres lésbicas em todos os lugares. “Tem uma importância enorme a gente discutir que existem mulheres lésbicas, as mulheres bissexuais, e que essas mulheres também têm pautas que precisam estar dentro do feminismo. O movimento não é só composto por mulheres heterossexuais. A gente precisa aparecer muito mais do que aparece, porque a gente existe muito mais do que dão a entender”, conclui Marília.

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Representatividade

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Na busca constante por se sentirem representadas, mulheres lésbicas vêm, através dos anos, criando materiais próprios para elucidar o feminismo lésbico e a lesbianidade como um todo. É o exemplo da revista Chanacomchana, criada em 1981 - em plena ditadura militar -, pelo Grupo de Ação Lésbica-Feminista (GALF), de São Paulo. A revista foi alvo do trabalho de conclusão de curso da Marília, que queria abordar o feminismo lésbico desde que entrou no curso de História da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Depois, a militante decidiu que o trabalho seria relacionado à ditadura militar, pela banalização do período histórico.

“Já é difícil achar documentos verídicos e abertos sobre a ditadura, e achar sobre as mulheres feministas é muito difícil também. Sobre as lésbicas então, era praticamente impossível.” Foi aí que Marília conseguiu, prestes a desistir, o contato - através do Facebook - de Miriam Martinho, uma das fundadoras do LF e uma das responsáveis pela Chanacomchana. O periódico circulou entre 1981 e 1988. 

 

Conforme Miriam, a revista foi a primeira publicação voltada à militância lésbica no País. "O Chana trouxe o discurso feminista para o meio lésbico e introduziu a questão lésbica no movimento feminista. Abordava questões de ativismo, da incipiente luta por direitos homossexuais, mas também questões ligadas à realidade lésbica: o armário (quase todas estavam nele), o preconceito, os relacionamentos entre mulheres, a maternidade lésbica, as artes (livros, filmes, peças de teatro que abordavam a questão lésbica), entre outros temas", explicou. 

Por quê, afinal, o sexo alheio incomoda?

 

O preconceito em relação à homossexualidade surgiu a partir do pressuposto de que os comportamentos que desviam do tradicional devem ser rejeitados e punidos. A ideia, conforme a antropóloga Gabriela Maia, teve início ainda no século 19, quando a homossexualidade emergiu dentro da sociedade. Os primeiros estudos sobre o tema levantaram questões jurídicas e psicológicas, que trouxeram ainda mais sombras para o assunto.

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Por se manifestarem em um período de muitas epidemias, as práticas sexuais “desviantes” se consolidaram como erradas, devendo, assim, ser proibidas. “O processo de transformar comportamentos sexuais em patologias e até mesmo construir uma identidade sexual - que é a homossexualidade - emerge, justamente, com todo esse saber sobre sexualidade, com o objetivo de normalizar comportamentos. Por uma necessidade política, econômica e social, regulando os comportamentos sexuais, eles foram escrutinados e classificados entre normais e anormais. E aí surge, por exemplo, uma valorização muito grande de casais monogâmicos, o combate à masturbação, para explicar o comportamento que desvia de um padrão emergente, a heterossexualidade”, comenta Gabriela.

 

Assim, o status da sexualidade passa a ser central e “importar” para toda a sociedade, preocupada com a disseminação e contágio de doenças, já que a homossexualidade foi relacionada, inclusive, com práticas desviantes e até criminosas, como a pedofilia e a zoofilia. A perspectiva é real até hoje, quando ainda são perpetuados crimes de ódio contra homossexuais e as práticas são condenadas, através da homofobia, da violência e da agressão física.

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Objetivo comum

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Como afirma Marília, apesar de estarem separadas, as vertentes feministas estão unidas por um objetivo comum: os direitos das mulheres e a equidade. É claro que há divergências entre as teorias, mas o importante é que o movimento atua como uma rede de apoio e, principalmente, como um grupo de compreensão e solidariedade. Ver o outro - seja ele igual ou diferente de mim - torna o feminismo um só movimento.

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“O feminismo para mim é como uma lente, que permite que eu olhe para o meu entorno de uma forma mais ampla. Portanto, nele não só cabe o feminismo negro, o lésbico e outros tantos, mas cabe o olhar para toda e qualquer pessoa que está numa relação de subalternidade na nossa sociedade. Pois, como diz Audre Lorde, "não sou livre enquanto outra mulher [e eu diria outra pessoa] for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas", finaliza Daniela Romcy.

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